1.
A tempestade passou. Mas nem
mesmo o beijo do sol me conforta, muito menos me alegra. Estou sem meus
pertences, mas o Chifre de Kamarion está a salvo num bolso interno da minha
roupa. Não sei ao certo o que Madava fará com este chifre de dragão, nem sabia
que os dragões tinham chifres vermelhos, nem que tinham chifres. Madava, grande
xamã, há tempos ela tenta me convencer a aprender sobre as teias invisíveis do
universo, mas eu recuso. Não é este o meu caminho.
2.
Estou em casa. Não sei quanto
tempo será necessário para as tropas de Merrick chegarem aqui na vila Lobo
Cego. Nem sei se chegarão. Esta vila é tão escondida, que talvez o faro dos
cães do Grande Rei não nos alcance. Minha mãe chega em casa, com as mãos e as
roupas sujas de terra. O dia chega ao fim. Minha mãe, ao me ver, larga as
ferramentas de trabalho e corre em minha direção. Primeiro me estapeia a face,
o que me dá muito prazer, o cheiro da terra misturado com o cheiro dela é
delicioso. A dor me faz sentir vivo. Depois dos tapas, ela me envolve num
abraço demorado, apertado, durante o qual entro num transe, sinto-me
momentaneamente protegido de todos os males. Tudo que vivi nos últimos seis
meses parece distante. Fim do abraço. A realidade desaba impiedosamente sobre
minha cabeça.
- Zenna. Onde você esteve esse
tempo todo? E que ferimentos são esses? Por que você está tão magra? Você disse
que ia aprender ofícios em uma oficina de Winssor!
- Eu tinha que mentir para você,
mãe, para o seu próprio bem.
- Pelo visto não é apenas a sua
aparência que está estranha. Suas palavras também. Desde quando você coloca “bem”
e “mentir” na mesma frase? Isto é culpa daquele grupo misterioso ao qual você
se uniu. Eu não devia ter te ensinado a ler...
Minha mãe fala por horas a fio. E
eu escuto com prazer sua voz grave e rouca. Maha Junish, mulher forte, mulher
sábia, minha mãe.
3.
Estou atacando um pernil com
ferocidade, tomando goles largos de água em chamas. Minha mãe não discursa
mais, só me observa comer, com um misto de prazer e assombro. Como até a última
migalha de pão branco, e tomo até a última gota de água em chamas. Beijo a
minha mãe, vou para o meu quarto, e caio na cama como uma bigorna. Após meses
tendo pesadelos e sonos atormentados, durmo um sono sem sonhos. O cheiro de
minha casa inebria-me. Acordo uma vez com a bexiga prestes a explodir, coloco
tudo para fora, e volto para a cama. Quando acordo, minha mãe diz que dormi por
18 horas. Diz também, em tom de reprovação, que “aquela Kulash” me aguardava na
sala. Sorrio como há muito tempo não sorrio. Jaira Molls, minha amiga de
infância, veio me ver. Faço minha higiene com pressa, e desço para recebê-la.
4.
Jaira está linda como sempre.
Linda e forte, como as mulheres kulashs. Conversamos muitas horas, enquanto uma
sopa fumegante perfuma o ar da casa. Jaira diz que os kulashs levantarão
acampamento, após décadas de sedentarismo na Floresta Vermelha. Pergunta-me
sobre a missão. Digo que tive sucesso. Minha mãe não parece nada contente, pois
pressente a minha partida. Tateio a roupa instintivamente. O Chifre ainda está
lá. E de uns dias para cá tinha aumentado de temperatura...
5.
Mas que lindas festas, estas dos
kulashs! Com certeza esta era a real vocação daquele belo povo. Festejar!
Bebemos, comemos e dançamos, saltamos sobre a grande fogueira, escutamos
histórias dos anciões, tudo isso embalado com a mais bela música de tambores,
pífaros e harpas, e os gritinhos ensandecidos das crianças, que saltitavam e
rodopiavam por todo canto.
6.
Agora estou na tenda do Conselho
Ancião. Madava, sentada no mesmo círculo que todos os presentes formavam, tece
elogios à minha bravura. Conta-nos novamente a história dos Antigos Dragões, e
pergunta-me se eu tenho comigo o Chifre. Acho engraçado, pois ela me pergunta
sobre o Chifre olhando para o ponto exato onde ele está guardado.
Entrego-lhe o Chifre. Ele está
insuportavelmente quente, mas a anciã não parece sentir, ou pelo menos não
esboça reação.
- Tash!
Um imenso kulash adentra a tenda.
Fazendo reverências.
- Informe a toda a tribo que
partiremos imediatamente. Nos juntaremos aos demais, no deserto Dalagbadh. A
Resistência Oculta está em marcha!
Quando Tash sai da tenda, os
festejos são subitamente interrompidos, e mesmo as crianças se calam. Aqui
dentro, Madava, segurando firmemente o Chifre de Kamarion, olha para nós e diz:
- Já temos os chifres de três dos
Grandes. Só nos falta mais dois.
Saio da tenda. Minha mãe está lá,
sentada numa grande pedra. É agora, preciso juntar coragem para, mais uma vez,
me despedir. E desta vez não sei se voltarei. Vou em sua direção, e só quando
me aproximo, percebo que aos seus pés estão duas enormes sacolas. Ela diz que
irá comigo para onde eu for. Nos abraçamos, ambas chorando, sorrindo...
Um batedor emerge da floresta,
ofegante, assustado.
- Precisamos ser rápidos.
Centenas de soldados de Merrick estão vindo, falam com ódio de todas as vilas
independentes, principalmente de Lobo Cego. Trazem consigo uma carruagem, muito
bem guarnecida com os soldados mais fortes e bem armados!
Madava, que já está perto de nós,
sussurra:
- Será que finalmente o pegaram?
Após o que, exclama:
- Apressem-se, kulashs,
precisamos ser rápidos, e que os Grandes Espíritos ajudem Lobo Cego a resistir!
Nos aprontamos numa velocidade
impressionante, e levantamos acampamento. Numa carruagem, deitada no colo de
minha mãe, penso em Lobo Cego. Os cães de Merrick os encontraram. Sinto-me
culpada por não permanecer, e lutar. Mas eu não posso. Não agora. Este é o meu
caminho, mas os passos precisam ser dados um de cada vez. Mesmo na guerra. E
haverá guerra.
Curti o conto, é uma boa introdução para história futura que já estou aguardando... hehehehe
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